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I'm on my way ( à caminho)

Foto do escritor: PretasRuasPretasRuas

Resignificando o abandono dos nossos!


Fomos jogadas fora e acreditaram que nós iriamos sucumbir e morrer e essa morte seria o fim daquele ser que não deveria estar presente naquela família.

Foi duro e cruel sair daquele lar e não saber para onde ir e nem que caminho estava a minha espera.


Mas algo dentro de mim me dizia vá e não olhes para trás, meu coração batia acelerado e ao mesmo tempo aliviado de ter revelado que eu era ELA.


A minha verdadeira ELA, estava livre para viver e existir naquele mundo tão grande que só tinha visto pela tv a imensidão, daquele dia em diante ELA passou a entender que o mundo ainda não era tão grande assim e aonde ela fosse tudo seria visto com outros olhos sobre ela.


Esse mundão não iria a receber de brações abertos e muito menos com afagos e carinhos como a mamãe e o papai faziam até ELA dizer que estava ali.

A primeira batalha foi saber quem era ELA no mundo já que não se via outras como ela, na tv, no jornal e muito menos a luz do sol.


Cansada de caminhar sem rumo e sem direção com a sua sacola nas mãos pois ela só carregava seus únicos pertences o vestido roubado do armário escondido da sua mãe, o batom velho e quebrado que deveria ter ido para o lixo, mas ela guardou e também um pequeno pedaço quebrado de espelho que durante muitos anos foi onde se viu refletida ELA mesma e veio um sorriso no rosto ao se lembrar da alegria dos momentos escondidas de se ver refletida naquele pedaço de espelho, quando ela colocava a tolha na cabeça e dançava sozinha e pensava somente como ela seria feliz e amada.


A noite cai ali sozinha na calçada, com fome e sem nenhum centavo para se alimentar pois saiu do jeito que deu, pois era isso ou morrer lá mesmo pela brutalidade dos que lá viviam e quem eram esses violentos, a família dela, sim os únicos que ela confiava e acreditava que o fato dela se apresentar a elas como se sentia de verdade seria algo bom pois sempre ouviu nós te amamos e queremos que vc seja feliz.


Só que ela teve que entender que esse feliz só era se fosse como eles projetaram, imagina para aquela família onde todos eram de cor escura e moravam em um lugar afastado e que a maioria ali sempre serviu e era visto com orgulhos pois tinha carteira assinada e trabalho digno, ela apartir daquele momento estava manchando tudo e fazendo eles se sentirem mais afastados da sociedade e entre ela e a visão social o pertencimento eles preferirão o que a sociedade sempre disse que deveria ser o certo.


Naquela mesma calçada e com muita fome ela lembrou de um lugar naquela cidade mesmo onde já tinha visto algumas pessoas que poderiam ser pessoas como ela e que sempre ela ouviu para tomar cuidado e que aquele tipo de gente não prestava.


Como para ela nada mais fazia sentido pois seu coração batia aliviado porem sangrando por acabar de perder tudo que ela resolveu se arriscar e ir em direção a esse caminho.


E lá chegou ela, ficou sentada encolhida no chão da calçada apenas observando tudo que ali se passava e aos poucos noite a dentro uma a uma daquelas DELAS chegavam e ela percebia a beleza daquelas que ela ali teve a certeza que ela também era uma igual.


Acompanhou aquela noite inteira atenta e percebeu que os carros se aproximavam alguns só contemplavam a beleza delas e outros a levavam e traziam, ela ainda não entendia muito bem para onde, mais só observada.


Quando a manhã foi chegando ela viu que todas começavam a ir e não mais a voltar e quando o sol raiou lá estava apenas ela faminta e sentada no mesmo chão frio e duro.


Ela faminta e pensativa acreditava que tudo aquilo não passava de um sonho devido a fome que sentia, com o sol no rosto as lojas todas começando a abrir, o movimento começando a fluir novamente ela teve a única ideia, ir comer na escola onde estudava, pois lá tinha todas as manhãs antes da aula, pão e café com leite. Então ali mesmo na rua colocou o vestido que tinha, passou seu batom quebrado se reconheceu no espelhinho e foi.


Em todos os lugares que passava só viu que todos riam e debochavam dela dizendo sempre que ela não era ela mesmo assim chegou e logo na entrada é recebida pela tia e anfitriã da escola que há conhecia pois também era daquela comunidade.


E a anfitriã da escola dela foi logo incisiva e aos berros gritava desse jeito você não entra, volte para casa e volte como ele.


Após todo aquele trajeto até ali e ao pensar que casa? Eles todos eles daquela casa tinham acabado por tentar eliminar a vida dela e dizer que ela não fazia mais parte daquela família ainda tentou explicar o que tinha acontecido mas não teve chance os olhares de reprovação eram tão fortes que só a restava a ela sair dali.


Quando estava saindo confusa e sem rota, ouviu a anfitriã escolar dizer: esse tipo de gente é assim, tadinha da dona maria, olha o que vai ter que passar com esse menino, virou isso.

Ela não entendia o que tinha virado, mas lembrou da noite passada de quando ouviu da sua família também que a acusava de ter virado isso e que eles aceitavam até um filho bandido mais ELA não.


Ali sua fome estava no nível máximo e já não sabia mais o que fazer, senta e começa a chorar e pensar no que eu me transformei que tipo de mostro eu sou que as pessoas não me querem próximo.


Quando de repente sentada com sua sacola na mão leva o seu primeiro chute e escuta sai daqui seu TRAVECO, levantasse rápido assustada e começa a correr sem direção e ouve ao fundo não volte nunca mais aqui, traveco tem que morrer.


Muito assustada e correndo sem direção chega a um viaduto que tinham alguns moradores de rua e ali se esconde entre os pilares da ponte.


Ainda sem entender absolutamente nada, com muita dor agora devido ao chute que tomou nas costelas, ela ainda escuta ecoando em sua cabeça, traveco tem que morrer.


Então pensa chegou a hora sobe naquela ponte que estava abrigada e vê aquele monte de carro passando e pensa chegou a hora vou acabar com tudo isso e fazer o que eles me pedem acabar com isso.


E ali de braços abertos preparada para se jogar e dar um fim aquela situação, ela a beira de pular lembrou de sua velha avó, que já havia falecido e era muito grudada com ela, uma senhora preta, gorda, que cozinhava divinamente e que todos da comunidade a chamavam de mãe preta e à respeitavam muito por ali na comunidade. que todos diziam a essa velha senhora você vai estragar essa criança, e ela imediatamente em alto e bom som sempre dizia: você é o melhor presente de Deus em nossas vidas, nunca se esqueça disso, a vovó te ama do jeito que você é, naquela época tão pequena não fazia sentido pois todos a afagavam e ouvir palavras de carinho era normal.


Mas ali a beira do fim ela foi novamente afagada pela sua avó que já havia falecido a muito e muitos anos porem tinha deixado esse sabor do amor em seu coração.


Pronto aqui começa a nova vida DELA para ELA, o caminho.


Esse caminho é espinhoso, dolorido, cansativo e ainda não aceito pelo mundo globalizado.

Ela sem saber absolutamente nada da vida, ela desce da ponte e decide que ela será a sua melhor versão dela.


Para isso fez um pacto consigo mesma de não morrer e não aceitar a morte como sua solução de apagamento e banimento da vida em sociedade e para isso todos os dias até hoje ela sempre acorda, se olha em um espelho vê seu reflexo e diz a si mesma você é a ela da vovó, siga e seja feliz.


Esse é o combustível que faz ela acordar e enfrentar todos e de existir e resistir, já viu dezenas delas serem mortas e estarem sendo mortas a cada 24h nesse mundo cruel.

Ela chega a vida adulta, depois de muitas adversidades que a ela a vida se apresenta, mas com uma alegria de existir no mundo como ELA/DELA.


O dia nacional da visibilidade trans e travesti ainda se faz necessário em 2022?

Estou aqui sentada, escrevendo e refletindo eu sobrevivi.


O direito de viver em sociedade e de existir no mundo, parece algo tão simples e natural, basta a concepção e já está você passa a existir nesse mundo.


Entretanto, uma parte da sociedade fica se perguntando aonde estão os meus direitos de existir?


Todas as manhãs, quando pessoas trans acordam, elas são lembradas que ainda não é possível gozar há vida delas e de se sentirem pertencentes as sociedades e as proteções do Estado.


O Estado da permissão para que nossos corpos sejam abandonados na infância e mortos na vida adulta, jogados para apodrecer sem identificação.


Externar uma vivencia trans significa isolamento, banimento e uma sentença de morte em vida, já começamos por perder o alicerce de qualquer pessoa a sua família sanguínea, depois dai as perdas são imensuráveis, ao ponto de só a “RUA” está à espera de nós.


Nessa RUA temos que aprender a ser fortes e corajosas e a nunca esperar nada do Estado e nem das autoridades que naquele momento passam e fingem não ver, assim como é feito com a pobreza com a fome e o racismo no mundo.


Essa rua, que é excludente e desumana ao anoitecer se torna um outro mundo, um local atraente e sedutor, com corpos expostos e ali está a maior vitrine humana do mundo disposta a satisfazer o prazer oculto de todos os homens que durante o dia estão em seus escritórios e casas com suas famílias, aparentemente perfeitas e sem nenhum tipo de problema.


Vão se saciar e voltam para suas vidas como se nada tivesse acontecido e fazem questão de esquecer o que foi vivido na noite passada, para assim se sentirem superiores e dignos socialmente.


Para quem não sabe o Brasil é o pais que mais consome pornografia trans no mundo estando em primeiro lugar no ranking e mantem essa posição também de campeão em assassinato de pessoas trans no mundo.


Como pode o pais que mais consome essa pornografia ser o que mais mata?


Todos os dias nos perguntamos como posso ser amada a noite e odiada durante o dia?


Os homens que saem com mulheres trans a noite as respeitam, amam e se entregam, mais isso tudo acaba como um passe de magica após o seu orgasmo, o que dali em diante faz dele um predador cruel e desumano, chegando muitas vezes ao ponto de matar para sentir dentro dele que nunca desejou aquele corpo saudável e digno porem excluído e marcado como sujo e desprovido de sentimentos.


A sociedade trata pessoas trans como se elas não fossem humanas e não possuíssem as mesmas emoções sim aquelas emoções lindas que todos sentem, tristeza, alegria, raiva e medo.


Somos vistas apenas como um pedaço de algo descartável que se usa e joga fora.

A vida de uma pessoa trans no Brasil está estimada até os 35 anos de idade no máximo, e talvez você se pergunte porque, como assim se a maioria da população já está vivendo até os 80 anos?


Isso acontece, pois, os nossos corpos são desejados e logo após mortos e abandonados a sociedade cobra a punição severa a vidas trans e não existe nada mais severo e punitivo que a morte de um ser humano simplesmente pelo fato dele existir e viver a sua plenitude.


Todos os dias a sociedade finge não se incomodar pois, aquele corpo é validado a morte.

Nossa voz nunca foi ouvida, apesar dos milénios que o mundo possui de existência pessoas trans nunca falaram delas mesmas sempre lutamos e estávamos a frente da luta mais logo que o conflito acabasse e as conquistas chegassem nossos corpos voltavam para a exclusão e marginalidade e os integrantes da luta não enxergavam nos como corpos que mereciam inclusão.


Então hoje nesse dia 29 de janeiro precisamos ressignificar a vida trans e entender que sempre estivemos presente na sociedade a sociedade só não captou os dados e fez eles serem usados como faz para todo o resto da população.


Tenho o mesmo discurso hoje de inclusão que desde 1988 na carta que todo cidadão poderia escrever para a criação da constituição os discursos das minhas ancestrais que foram apagadas mortas e nem veladas apenas jogadas na terra para que fossem logo comidas.


Já passamos mais de 30 anos e ainda estamos fazendo parecer que é algo novo a existência de pessoas trans em sociedade.


O que temos de novo agora é que essas pessoas não aceitam mais terem suas vidas roubadas e aniquiladas e a ideia de Estado e pessoas de bem não nos contemplar.


Texto por: Tatiana Crispim, mulher transexual Negra e a 1ª Advogada Trans Pós graduada em Direito Militar do Brasil.

É apoiadora dos Direitos humanos, entusiasta para a inclusão da população Trans no convívio social efetivo e real, membro da Rede Trans Brasil, Membro fundadora do grupo Grupo Dororidade Jurídica, Vereadora Suplente pela cidade de São Pedro da Aldeia no ano de 2020 e atualmente está vivendo em Portugal e experimentando uma nova cultura.


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